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Cultura do estupro

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Cultura do estupro ou cultura da violação é um contexto no qual a violação sexual é pervasiva e normalizada devido a atitudes sociais sobre gênero e sexualidade.[1][2][3][4][5]

A sociologia da cultura do estupro é estudada academicamente por feministas, mas há uma discordância sobre o que define uma cultura do estupro e se determinadas sociedades preenchem os critérios para que possuam uma cultura de estupro.[6] Comportamentos comumente associados com a cultura do estupro incluem a culpabilização da vítima, a objetificação sexual da mulher, a crença em mitos do estupro,[7] trivialização do estupro, a negação de estupros, a recusa de reconhecer o dano causado por algumas formas de violência sexual, ou a combinação entre esses comportamentos.[8] A noção de cultura do estupro foi usada para descrever e explicar comportamento dentro de grupos sociais, incluindo estupros dentro de prisões, e em áreas de conflito onde estupros de guerra eram usados como arma psicológica. Sociedades inteiras foram acusadas de possuir uma cultura de estupro.[6][9][10][11][12]

Há evidências que sugerem que a cultura do estupro é correlacionada a outros fatores e comportamentos sociais, tais como racismo, sexismo, homofobia, classismo, intolerância religiosa e outras formas de discriminação.

Origem e uso do termo

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O termo "cultura do estupro" foi usado pela primeira vez, provavelmente, por notáveis ativistas da segunda onda do feminismo; e foi aplicado à cultura estadunidense contemporânea como um todo.[13]

Durante os anos 70, feministas da segunda onda começaram a se envolver em esforços de conscientização criados para educar o público sobre a prevalência do estupro. Antes, de acordo a Alexandra Rutherford, professora canadense de psicologia, a maioria dos americanos assumia que estupro, incesto e violência doméstica raramente aconteciam.[14] O conceito de cultura do estupro assumia que o estupro era comum e normal na cultura americana, e que era simplesmente uma manifestação extrema da misoginia e do sexismo pervasivos na sociedade.

O termo aparece registrado pela primeira vez em 1974 no livro Rape: The First Sourcebook for Women, editado por Noreen Connel e Cassandra Wilson ao New York Radical Feminists.[15] Esse livro, junto a Against Our Will: Men, Women, and Rape, de 1975, escrito por Susan Browmiller, foi um dos primeiros a incluir relatos de estupro em primeira pessoa, e tinha objetivo de defender que estupros eram muito mais comum do que se cria.[16] No livro, o grupo defendia que "nosso objetivo principal é eliminar os estupros e esse objetivo não poderá ser atingido sem uma transformação revolucionária da sociedade".[17]

A professora de sociologia Joyce E. Williams traça a origem e o primeiro uso do termo cultura do estupro[18] ao documentário de 1975 Rape Culture, produzido e dirigido por Margaret Lazarus e Renner Wunderlich a Cambridge Documentary Films, e diz que o filme "leva o crédito por definir o conceito pela primeira vez". O filme discutia estupros de homens e mulheres no contexto de uma normalização cultural mais ampla do estupro.[19][20] O filme apresentou o trabalho do Centro de Crise de Estupros de Washington em cooperação com a organização Prisioneiros Contra o Estupro Ltda. Inclui entrevistas com estupradores e vítimas, além de ativistas importantes, como a filósofa feminista e teóloga Mary Daly, e a autora e artista Emily Culpepper. O filme também explora como a mídia de massa e a cultura popular ajudaram a perpetuar estupros.

A cultura do estupro tem sido descrita como prejudicial para ambos mulheres e homens. Alguns escritores e oradores, como Jackson Katz, Michael Kimmel e Don McPherson, dizem que esta cultura está intrinsecamente ligada a papéis de gênero que limitam a autoexpressão do homem, causando-lhe danos psicológicos.[21]

De acordo com a cientista política Iris Marion Young, as vítimas em culturas de estupro vivem com medo de atos aleatórios de violência sexual opressiva que se destinam a prejudicar ou humilhar a vítima.[22] Outros ligam a cultura do estupro à modernização e à industrialização, argumentando que sociedades pré-industriais tendem a ser culturas "livre de estupro", uma vez que o estatuto inferior das mulheres nessas sociedades asseguram-lhe lguma imunidade contra a violência sexual. Em culturas de estupro industriais, as mulheres saem de suas funções em casa e se tornam visíveis no local de trabalho e outras áreas tradicionalmente dominadas pelos homens, aumentando a insegurança do sexo masculino que resultam em usar o estupro para reprimir as mulheres.[23][24] Outros também vinculam a cultura do estupro à inseguranças ambientais, onde os homens objetivam mulheres como parte de sua luta para controlar seu ambiente imediato. Esta cultura também está ligada à segregação de género e a crença de que o estupro prova masculinidade.[25] Outras manifestações da cultura do estupro incluem a negação do estupro generalizada,[26] a apatia das instituições quanto ao problema do estupro,[27] minimização dos casos de estupro por funcionários do governo,[26][27][28] e a desculpa de que estupradores são anomalias sociais.[26][27]

Uma preocupação é que a cultura do estupro nos Estados Unidos pode influenciar jurados de tomada de decisão em ensaios de agressão sexual. O resultado é que os homens que cometeram crimes de agressão sexual podem receber pouca ou nenhuma punição, o que serve para fortalecer a cultura do estupro no sistema judicial americano e na sociedade americana como um todo.[29]

Efeitos sobre os homens

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O termo usado para definir a que os homens são submetidos em uma cultura do estupro é masculinidade tóxica. Este é um estereótipo de gênero que sobrecarrega os homens na sociedade, os descreve como sexualmente motivados e violentos.[30]

Para desmontar a cultura do estupro exige-se o desfazer de mais do que apenas a normalização e a tolerância para com a agressão sexual e o estupro. Seria necessário abordar os estereótipos de gênero em uma sociedade patriarcal e aliviar a ambos os sexos de suas pressões.[31] Em uma sociedade patriarcal, os homens são esperados serem dominantes, fortes, violentos, sexuais e controladores, as mulheres são esperadas serem submissas, fracas, passivas, decorativas e controláveis. Emma Watson, a Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas para as Mulheres, disse no lançamento da campanha HeForShe que permitir que as mulheres assumam o controle e sejam fortes vai permitir aos homens se aliviar de responsabilidades que lhes são impostas pela masculinidade tóxica de uma cultura de estupro.[32]

Culpabilização da vítima e Slut shaming

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Ver artigos principais: Culpabilização da vítima e Slut shaming

A culpabilização da vítima é o fenômeno em que a vítima de um crime é parcialmente ou inteiramente considerada como responsável pelas transgressões cometidas contra ela.[33] Por exemplo, a vítima de um crime (neste caso, estupro ou abuso sexual), é perguntada por parte da polícia, em uma sala de emergência, ou em uma sala de tribunal, perguntas que sugerem que a vítima estava fazendo alguma coisa, agindo de uma certa maneira, ou vestindo roupas que podem ter provocado o perpetrador, portanto, tornando as transgressões contra a vítima sua culpa.[34][35]

Respectivamente, as senadoras Vanessa Grazziotin, Gleisi Hoffmann e Fátima Bezerra seguram cartazes pelo fim da cultura do estupro durante sessão deliberativa ordinária

Casos de estupros e estupro coletivos ocorridos durante 2016 motivaram a discussão sobre a existência da cultura do estupro no Brasil, campanhas, artigos e comentários de políticos, servidores públicos e celebridades divergiram sobre a existência da cultura do estupro.[36]

A RAINN, uma das organizações antiviolência sexuais líder da América do Norte, em um relatório detalhando recomendações à Casa Branca sobre a luta contra o estupro em campi universitários nos EUA, identifica problemas com a ênfase excessiva no conceito de cultura do estupro como um meio de prevenir o estupro e como uma causa para o estupro, dizendo: "nos últimos anos, tem havido uma tendência infeliz no sentido de atribuir o grande problema da violência sexual nos campi à "cultura do estupro". Embora seja útil apontar as barreiras sistêmicas para enfrentar o problema, é importante não perder de vista um fato simples: o estupro não é causado por fatores culturais, mas pelas decisões conscientes, de uma pequena percentagem da comunidade, que comete um crime violento".[37] Estima-se que na faculdade, 90 % dos estupros são cometidos por 3-7% da população masculina,[38] embora se preveja que a RAINN não tem números confiáveis ​​para agressores do sexo feminino. A RAINN argumenta que o estupro é o produto de indivíduos que decidiram ignorar a mensagem cultural esmagadora de que o estupro é errado. O relatório argumenta que a tendência em focar em fatores culturais que supostamente toleram estupro "tem o efeito paradoxal de torná-lo mais difícil de cessar a violência sexual, uma vez que remove o foco do indivíduo que errou, e, aparentemente, atenua a responsabilidade pessoal de suas próprias ações".[39]

Em uma entrevista de 2013, Camille Paglia descreveu as preocupações sobre a cultura do estupro como "ridícula" e "neurótica", um artefato de ideologias liberais burguesas de que as pessoas são essencialmente boas e que todos os problemas sociais podem ser corrigidas por re-educação.[40]

Referências

  1. Olfman, Sharna (2009). The Sexualization of Childhood. ABC-CLIO. p. 9.
  2. Flintoft, Rebecca (October 2001). John Nicoletti, Sally Spencer-Thomas, Christopher M. Bollinger, ed. Violence Goes to College: The Authoritative Guide to Prevention and Intervention. Charles C Thomas. p. 134. ISBN 978-0398071912.
  3. Beatriz Farrugia, Sarah Germano e Tatiana Girardi (14 de junho de 2016). «Crimes levam Brasil e Itália a debaterem 'cultura do estupro'». ANSA Brasil. Consultado em 16 de junho de 2016. Cópia arquivada em 15 de junho de 2016 
  4. «"Cultura do estupro": a culpa é da vítima?». UOL Educação. Consultado em 16 de junho de 2016. Cópia arquivada em 15 de agosto de 2014 
  5. «ONU: Por que falamos de cultura do estupro?». Agência Patrícia Galvão. 31 de maio de 2016. Consultado em 16 de junho de 2016. Cópia arquivada em 16 de junho de 2016 
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  7. John Nicoletti; Christopher M. Bollinger; Sally Spencer-Thomas (2009). Violence Goes to College: The Authoritative Guide to Prevention and Intervention. Charles C Thomas Publisher. p. 134. ISBN 978-0-398-08558-2. (em inglês)
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  9. Rozee, Patricia. "Resisting a Rape Culture". Rape Resistance. Retrieved 11 January 2012.
  10. Steffes, Micah (January 2008). "The American Rape Culture". High Plains Reader. Retrieved 11 January 2012.
  11. Maitse, Teboho (1998). "Political change, rape, and pornography in postapartheid South Africa". Gender & Development 6 (3): 55–59. doi:10.1080/741922834. ISSN 1355-2074.
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  14. Review of Against Our Will: Men, Women, and Rape quoted in Rutherford, Alexandra (June 2011). "Sexual Violence Against Women: Putting Rape Research in Context". Psychology of Women Quarterly 35 (2): 342–347. doi:10.1177/0361684311404307. Retrieved 15 June 2012.
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Ligações externas

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